AMOR QUE AMANSA

20/07/2013 02:30

Amor que é amor amansa. Descansa na fronha os artifícios da bravura, retira as  armaduras, corta unhas em dias de chuva e faz vir à luz palavras macias que não  combinam com bigodes.

Mulher que sabe o que quer não se dobra, mas redobra o cuidado para não virar quase homem, esquecer o que sabe sobre a ancestral conduta que lhe permite administrar o mundo mesmo sem parecer que o faz.

Mulher que é mulher faz da fragilidade o seu escudo. Seu grito de guerra é manso. É no seu olhar que descansa o remanso do mundo.

A comadre Efigênia é um caso assim. Munida de destreza invejável, soube muito bem utilizar o poder que os seios e ovários lhe atribuíram.

Quando chegou em sua vida, Amâncio era portador de um temperamento insuportável. Além de péssima mania de cuspir compulsivamente pelos quatro cantos do mundo, era incapaz de um gesto de carinho em público.

Criado no mais rigoroso sistema de família, modelo humano que ensina ao homem a dura missão de comandar o mundo, Amâncio era uma discrepância absoluta com o próprio nome. Nada de manso, nada de terno, nada de polido.

Em dias de sofrimento, a expressão sisuda. Em dias de alegria, a expressão de indiferença. Um estoico na conduta. Rosto que não se entregava ao movimento dos músculos que nos emprestam expressões amorosas, humanas, viventes.

Ninguém conseguia entender a opção de Efigênia. Parentes gritavam, indignados. Manifestações públicas de repúdio pela aparente indigência amorosa a que era submetida nossa meiga e prendada menina de olhos ternos e, por acréscimo, azuis.

Eu mesma quis interferir naquela relação. Argumentei com todos os meus recursos de arte dramática que o sofrimento de comadre Efigênia não valia o conforto daquela casa bem situada.

Rua Oscar de Oliveira Lima, divisa com o fórum, frente para a praça da matriz, esquina ajardinada, frondosa, iluminada. Casa de miolo requintado. Móveis de jacarandá, armários de sucupira, um ou outro detalhe em imbuia, azulejos portugueses, cristais expostos por todos os cantos. Tudo muito sofisticado, mas triste, tristíssimo, sobretudo quando o nada manso Amâncio penetrava os umbrais com sua presença torpe e indigesta.

A comadre Efigênia limitou-se a franzir a testa. Eu sabia muito bem o que o gesto significava. Desde criança, quando a vida ainda nos permitia banhos de rio que prolongavam nosso direito de sermos pequenos, ao passo que as bonecas nos antecipavam a maternidade, a testa franzida representava reprovação.

Mas a verdade não demorou a amanhecer em nossos quintais. O tempo foi respondendo sem anseios. Aliás, o tempo responde a tudo. O fato é que mais tarde pude intuir que comadre trabalhava no silêncio, assim como a aranha faz crescer a sua teia.

Os indícios do trabalho foram se avolumando. Vez ou outra, eu flagrava Amâncio cochichando ao ouvido da comadre - gesto inadmissível para um descendente da família Astorga Camargo.

A princípio, pensei que pudesse ser um recado lembrado, notícia que não pode esperar o bater do portão da rua, mas não. O riso de ambos ajudou-me a intuir a verdade: Amâncio estava mudando. Assim como o domador domestica sua fera, a comadre realizava a proeza de amansar Amâncio.

Atado a um laço invisível que tinha as pontas nas mãos da frágil Efigênia, o macho aparentemente indomável se aninhava como se fosse um gatinho aos pés da domadora.

O cochicho me surpreendeu. O gesto recordava-me os amantes do cinema. O riso cúmplice, os olhares indefesos, seguros de que poderiam expressar os limites sem o risco da condição de vítima.

A vida segredada, a palavra próxima, quase depositada na cavidade do ouvido. O sussurro, a fala particular, coisas que aos românticos pertencem.

Quis unir aquela forma de dizer ao modelo que prevalece na linguagem dos machos. Manoel Rodrigues, capitão Rodarte Freitas, Ulisses de Almeida Prado. Homens com os quais Amâncio dividia tardes inteiras negociando gado, testando arreios, discutindo investimentos, coisas que não combinam com conversas ao pé do ouvido, manifestações públicas de carinho. Esses homens, reconhecidos homens, famosos pela bravura e pelo poder que a riqueza lhes troxera, jamais seriam capazes de deixar fluir a fragilidade que o amor demonstra. Para eles o amor é quase uma vergonha. Forma de perder a hombridade, de tornarem-se vulneráveis, fracos.

Suas mulheres, submissas mulheres, acostumavam-se às obrigações de alcova, e só. Mãos rudes e gestos curtos - o amor na submissão não tem delonga. O beijo não existe, as mãos não se entrelaçam, cúmplices. O que há é a ordem definitiva, a palavra de sempre, o vão das pernas desnudo, humilhado, porque ainda cheio de pudor.

Muitos testemunham que Eustáquia Vieira Belo morreu de um mal provocado pelo seu finado marido, o coronel Paulo Belo, ao cumprir suas obrigações de alcova.

Certeza ninguém tem, mas duas ou três vezes na semana, logo pela manhã, as empregadas precisavam lhe aplicar compressas de água quente e erva medicinal pelo corpo.

O unguento era para aliviar alguma forma de sofrimento. Incertezas à parte, o fato é que Eustáquia deitou numa tarde de quinta não amanheceu na sexta.

Pouco se sabe sobre o ocorrido. Até hoje o doutor Garcia não revelou a causa da morte da pobrezinha. Quando questionado, limita-se a fechar oa olhos, reflexivo, e acenar de forma negativa com a cabeça, como se escondesse o terceiro segredo de Fátima.

Além da fama de santa, Eustáquia, por ocasião de sua morte, ganhou do marido um funeral como nunca fora visto em toda aquela região. Vestido de preto e montando seu melhor cavalo, o coronel conduziu com elegância e nobreza o cortejo. Os olhos sem nenhum sinal de lágrima, a boca expressando conformidade e um leve franzido de testa testemunhavam que o coronel vivenciava o funeral com a mesma disposição com que negociava o seu gado. Sua pose garbosa era quase uma afronta ao corpo morto de Eustáquia.

Ele, vestido naquele terno preto de ocasião, montado naquele cavalo que inspirava a mesma personalidade do dono, parecia procurar substituta para o cargo agora desocupado. A banda seguia atrás do esquife executando marchas tristes. Aquele dia representou a vitória do macho sobre a fêmea sofredora.

A comadre Efigênia, po sua vez, não se dobrou aos ditames do machismo. Sem alterar  a voz, fazer passeatas ou queimar sutiãs na praça, ela foi transformando aos poucos o gênio difícil do marido que a vida lhe deu. Foi dama. Com fala mansa, olhar cuidadoso, soube investigar a alma de Amâncio tal qual o terapeuta investiga seu paciente. Teceu outro homem. Tal qual tecelã, entrelaçou novas cores no homem opaco que tinha ao seu lado.

Anos mais tarde, o que eu sabia sem alardes foi constatado por todos. Manifestação pública. O domingo era comum. Nada a ser celebrado de especial, senão os motivos ordinários da missa dominical. Antes que padre Jorge nos despedisse em bênção, Amâncio solicitou um espaço para uma pequena fala ao altar.

Comadre Efigênia recebeu a iniciativa num sobressalto. A igreja lotada - única missa da semana por uma razão simples: o padre Jorge não demonstrava muita alegria em ser padre. Amigos presentes, cheiro de testosterona prevalecendo sobre um outro aroma de rosas, e o compadre Amâncio com um pequeno papel no púlpito, pronto para discurssar.

Durou quinze minutos. Não podíamos acreditar no que víamos e ouvíamos. Adelaide Sobreira só viu, devido à surdez, ao passo que Edivirges Mariano só ouviu. O glaucoma não lhe perdoou o descuido com a pressão dos olhos.

Com a voz embargada e as lágrimas correndo sem restrições, Amâncio fez uma declaração de amor que para sempre ficará registrada na memória daquela igreja. Padre Jorge chorou tal qual criança desmamada - fato que gerou comentários e suspeitas de que o sacerdote atravessa um forte crise vocacional.

Olegário Bernardes, o marido carrasco, não fez questão de esconder o desconcerto - tossiu todo o tempo que durou o discurso, como se o vírus inoportuno da tuberculose tivesse se entranhado pelos seus pulmões.

Etalvina Beldegária, que estava de pé, pronta para deixar a igreja - escrava de uma panela de pressão em que deixara cozinhando um quilo de feijão -, precisou sentar com urgência. Osório Rinoto, o solteiro de sexualidade duvidosa, visivelmente descontrolado diante dos apelos emotivos do discurso, ofereceu-lhe com solicitude o lugar no banco, com um pequenino e delicado lenço de papel para enxugar as lágrimas.

Eu me ocupei em observar as reações. Só depois pude recolher as minhas impressões. Com aquele gesto, Amâncio parecia apresentar ao público a sua carta de alforria. Ele, o escravo confesso. E ela, Efigênia, a sua princesa Isabel, oculta até então, mas recebendo a coroa em noite de gala.

Amâncio tinha seus motivos. Especulamos. Certamente não desejava mais a privação do amor de alcova. Queria o direito de falas macias acompanhadas de olhares dengosos. Queria ser chamado publicamente pelo apelido particular - "chuchu" -, alcunha que só depois de algum tempo a comadre nos revelou.

Aquela forma de chamar era meiga demais para um homem daquele porte. Quase um discrepância, um despropósito, pensei. Comadre confidenciou-me que o legume fora escolhido pelo próprio Amâncio, numa noite em que as armaduras estavam todas postas ao chão. Aninhado em seu colo como se fosse um bichinho frágil, ele lhe confidenciou que gostaria de ser chamado de forma carinhosa quando estivessem a sós.

Primeiro ela partiu dos desdobramentos de seu nome e sugeriu "Mansinho", coisa que ele imediatamente recusou. Depois sugeriu "Torguinha". referindo-se ao sobrenome, mas ele torceu o nariz. Pensou que pudesse sugerir que fosse algo que ela gostasse de comer. Comadre Efigênia confessou-me ter ficado corada com a fala do compadre. Imediatamente ela propôs "tomatinho", mas ele torceu o nariz. Pensou que pudesse sugerir "repolho", mas julgou parecer ofensivo. Um homem repolho? Não. Isso soaria como homem molenga, sem iniciativa. Tinha que ser carinhoso e ao mesmo tempo preservar sua virilidade.

Sem erguer os olhos, como se fosse um menininho de perninhas quebradas desejoso de doces, o compadre resolveu sugerir:

- Não pode ser chuchu?

- Claro, meu amor! - sentenciou, amorosa, a comadre.

Era noite de inverno. Deitados em seu leito de amor, os amantes se entrelaçaram, afetuosos. Com a luz já apagada, a comadre Efigênia batizou-o, assim como o padre Jorge batizava os seus catecúmenos. Ele deitou "Amâncio" e levantou "chuchu".

Confesso que admiro esse jeito que a comadre teve de amansar o compadre Amâncio. Para levar esse homem a essa coragem, ela deve ter feito muito esforço para mover o moinho. Homem é moinho pesado, e nem sempre o vento sopra a favor.

É nessa hora que a gente precisa descobrir o poder que as mulheres tem nas mãos. É só saber exercer. A verdadeira postura feminina não está na submissão, mas não podemos negar que há um jeito de mandar e, ao mesmo tempo, parecer obediente.

Autoridade de mulher não passa pela força do grito. Uma ordem bem dada nem sempre precisa causar alarde. Há um jeito interessante de mover a ordem das coisas sem que a força da mulher precise ser bruta. É preciso descobrir a arte de mandar sem que o homem perceba que está mandando.

Comadre Efigênia descobriu onde mora esse milagre dentro da sua alma. Buscou nos recursos do amor a palavra certeira, convicente, milagrosa. Ao enfrentar as durezas do mundo dos homens, fez prevalecer o charme, a calma e o espírito da dama. Não quis se brutalizar, ao contrário. Cada dia mais mulher, colocou todos os seus hormônios para lutarem a seu favor. E venceu. Ela sabe das coisas. E aprendi com ela. Macho bom é macho domesticado.

 

 

Do Livro "MULHERES CHEIAS DE GRAÇA"

Pe. Fábio de Melo